A história da rosa

Sabes, meu filho, não há rosas sem espinhos. Pois é, concordei eu. Mas nem sempre foi
assim. Sabias? Isso já não, confessei. É verdade meu filho, tempos havidos, as rosas não tinham
espinhos, como qualquer outra flor. A velhota despertara-me a curiosidade. Queres saber o que
se passou entretanto? Claro, queria mesmo. Então escuta com atenção.
Como te disse, tempos houve em que as rosas não tinham espinhos. Aqui na Serra,
também não havia tanta flor, tudo estava coberto de matagal e os lobos eram mais do que os
espinheiros. A Natureza tem muita força, ela rege a vida do Universo, predestina tudo, a vida
dos animais, das plantas e dos homens. Um dia, por desígnios seus, apareceu uma bela rosa,
uma rosa mais bela do que qualquer outra, crescendo sozinha no meio do mato. As abelhas e as
mariposas logo levaram a notícia em todas as direcções e nunca mais a rosa deixou de ser
visitada por verdadeiros enxames desses simpáticos insectos. Talvez por isso, quem sabe, mas
não lhe podemos levar muito a mal, tornou-se um poucochinho vaidosa. Fechando os olhos à
beleza que a rodeava – a Serra é muito bela, não achas? – fechando os olhos à beleza que a
rodeava, ia eu dizendo, a rosa nem sequer se apercebeu de que quase junto ao caule, nascera e
crescia um gordo cacto. Esta planta é muito humilde, talvez por se considerar feia e horrível,
com os seus picos sempre espetados contra inimigos, uns verdadeiros e outros imaginários. O
cacto desta história sentia-se ainda mais humilde e triste por ter uma vizinha que não lhe ligava.
Viveram assim durante muito tempo as duas plantas: uma lá no alto, vistosa, a outra rente ao
chão, modesta. Mas, um dia, ah!, aconteceu uma coisa de pasmar. Sofria-se nesse momento uma
pavorosa seca. A nossa rosa, porém, mantinha o viço como se todos os dias fosse regada. As
raízes continuavam a sentir o subsolo húmido e a criar seiva para a flor permanecer de pé e não
desmaiar de cor. Como era possível tal coisa? Apenas porque o cacto tinha no interior um
reservatório de água e, de quando em vez, libertava alguma dessa água para a terra. Mas, como
era modesto e tímido, nada confessava desse seu gesto. Por essa ocasião, conta--se, um homem
perdeu-se na serra e, vagueando, vagueando, quase morto de sede, abeirou-se do sítio onde
viviam a rosa e o cacto. Ao ver este, como era viajado e conhecedor, recordou sabedorias
antigas, e pegando numa faca de mato arrancou-o, abriu-o ao meio e bebeu a água muito
fresquinha. Desta forma, o homem ganhou novas forças e salvou-se de uma morte certa. O
pobre cacto, esse, coitado, morreu. Mas a rosa aprendeu a lição; se aprendeu! Desde logo
suspeitou; se ainda estava viva, ao cacto o devia. Fora dele, sem dúvida, a água que impedira
que ela murchasse e secasse. Teve por isso de reconhecer: nem só a beleza é coisa importante.
Afinal, o cacto, a cuja presença nunca ligara, salvara a vida de um homem. E então chorou,
arrependida, por não ter tido tempo, ocupada com a sua beleza como sempre estivera, de
reconhecer e dar valor ao vizinho. Debruçou-se a seguir sobre os seus restos, num abraço de
despedida. Disse-te há pouco, a natureza é cheia de desígnios e só ela os entende. Nós não
podemos nada contra ela. Pois sucedeu uma coisa inesperada: ao dar-se aquele abraço, os picos
do cacto espetaram-se no caule da rosa. Não, não, ela não sentiu dor nenhuma. A flor até ficou
reconhecida por isso ter sucedido. Era a última homenagem prestada à valente planta. E aqui
tens: a partir desse dia as rosas passaram a nascer com espinhos.
 
Gorjão Duarte
A Minha Amiga Serra
Lisboa, Livros Horizonte, 1990

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